Vida FM
— Esse homem tá esquisito.
— Esquisito como?
Ainda acorda às 5h da manhã, rotineiramente. Mas antes de começar os rituais de preparo de suas poções caseiras para todos os males, sintoniza na estação recém-descoberta o aparelho de rádio orgulhosamente consertado. Inunda a casa com os perfumes das ervas, raízes, frutas e café forte, enquanto se satisfaz com aquela música aleatória.
Sai para o trabalho pesado logo cedo, assim como também retorna cedo. “Acordar com os galos, dormir com as galinhas!” Lição aprendida desde sempre, na roça em que nasceu, cresceu e se fez homem de casca grossa e cara amarrada. Truculento e brabo.
Já fez de um tudo nessa vida. Trabalho nunca faltou, que homem bom e forte não foge ao batente. Garantiu sempre o sustento da família, com muito músculo e um pretenso uso moderado dos neurônios, “porque a cabeça engana muito, não dá pra se agarrar tanto nela.”
Sempre foi conhecido pela falta de sossego. Enquanto não estava trabalhando fora, consertava ou inventava coisas em casa. Desmontava e remontava objetos, fazia um puxadinho, plantava horta, remendava roupas. Sempre em movimento. Poucas, raríssimas palavras.
Ultimamente, chega em casa e quer cozinhar. Colher e preparar os frutos da horta. Quer que sentem com ele ao redor da mesa, que vejam enquanto ele prepara a comida. Que gravem vídeos, até! Que estejam juntos.
Ele descansa. Está sorrindo! Os filhos fazem piada da idade, das rugas, das roupas, do desajeitado dos gestos. Ele já não responde com ameaças. Ensaia divertir-se de si mesmo. Ostenta as rugas do rosto, os calos das mãos. Conta histórias da roça, das viagens que já fez na vida, dos causos que ouviu por esse mundo de andanças. Inventa algumas, mas ninguém denuncia. Não sabem muito o que fazer desta nova roupagem do homem.
Este homem, aos sessenta e tantos, quis comemorar o próprio aniversário. Nada grande, mas fez questão de reunir algumas pessoas. Aceitou que lhe fizessem um bolo. Soprou as velas, fazendo um pedido, e ainda repetiu o pedaço.
Na comemoração, sintonizou a mesma rádio, no mesmo aparelho, em volume alto. Incentivou que dançassem e assistiu satisfeito, enquanto tomava sua cerveja barata e quente.
— Estamos com medo que ele esteja escondendo algum sintoma. Que esteja achando que vai morrer logo.
— Pois a mim, parece que ele está decidindo viver.
