Tudo aquilo que eu nunca lhe disse
Irresponsável, arrogante, manipulador, mentiroso. Suas linhas de ferro fizeram da minha vida um brinquedo em sua redoma, enquanto você, anda em sua própria corda bamba, sem se preocupar com a queda. Eu sempre estive ali, como um paraquedas. A queda nunca te machucou, mas eu estou no chão, cansada, cheia de todas essas feridas.
Estive ali para segurar seus erros cortantes, que despedaçaram meus sonhos infantis, esperanças adolescentes e perspectivas numa vida adulta. O único erro que permite a mim é o de seguir fantasiando ou alimentando sua fantasia doentia de uma perfeição. Você entende bem de fantasias, afinal. Se veste para os outros, mas, no meio da noite, se transfigura em alguém que eu desconheço. Mentira… Eu conheço sim. Vivi toda uma vida vendo essa versão, dia e noite, e só quando à luz da plateia, se mostra uma outra coisa. Ao tocar os sinos, dá lugar aos olhos fixos e frios, sempre à espreita, pronto para seguir como um inconsequente. Você faz de todas as pessoas ao seu redor o seu público, que vive em função de todos os seus erros. Erros de um moleque dito rejeitado, de um adolescente rebelde, de um jovem viúvo, do adulto mau caráter. Erros de alguém que brinca com as palavras, sedutor que só, e faz delas sua própria arma, não contra si, contra os outros que querem o seu bem. Erros de um pai que resolveu ficar, mas que talvez, seria melhor se tivesse ido.
Você amontoa carreiras com os sonhos de cura das suas vítimas, sagaz, transforma-as em pó. Reduzidas, sem forças, inertes, totalmente entregues à você. E por isso, hoje não hesito: sinto vergonha de você. Sinto culpa por cair em sua conversa, por admirar seu cuidado em forma de controle. Sinto raiva por não permitir que eu viva e, mais ainda, por não conseguir viver por conta própria, mesmo disposta a pagar por isso. Sinto muito pelo modo como trilha o seu caminho, enxergando a mim ora como um troféu brilhante, ora como alguém que te humilha pelo simples fato de ter um diploma. Sinto nojo das suas mentiras, e principalmente, por ainda por acreditar em cada palavra sua. Sinto ódio pelo modo como esbraveja leis e regras por todos os lados, mas não é capaz de olhar para si. Sinto pena de como age, como se não pudesse ser quebrado, de tão frágil, dentro dessa casca transvestida em desrespeito e insensatez.
A verdade é que nessa de ser um fantoche cor-de-rosa, eu me acostumei tanto a olhar para você como meu grande guia. Sinto saudades em olhar para você e imaginar uma vida normal, nada além disso, com domingos calorosos, risadas e Beatles. Mas o que temos é um eterno domingo chuvoso, numa vida em que eu vivo pelo seu próprio propósito sem ousar pedir qualquer coisa além do seu olhar. Como se para me sentir cuidada como filha, eu precise sentir que cada célula adoece pela espera dessa normalidade.
Você me deu as piores versões que eu poderia ver de um homem e eis me aqui, fazendo piada para minha analista devaneando sobre minhas não-relações: como eu posso temer tanto entrar em um relacionamento abusivo se eu nasci em um? E ao lançar sua pergunta, em resposta ao que eu disse, eu choro. Eu não consigo lutar contra isso. Estou cansada de lutar. Quero somente a espera, a fuga ou a fantasia tola de que simplesmente um homem, esse sim, me salvaria disso. Então se não posso fazer nada, se não consigo, eu espero. Sento e escrevo. Espero pelo fim, disposta a pagar por ele e apagar ele. Um fim doloroso e, estranhamente corajoso de ser esperado, disse a analista. E, talvez, querido, não sejamos tão diferentes. Eu vivo minhas mentiras. A mentira da menina que tudo aceita, que tudo perdoa. Mas não. Eu não sinto nada. Sinto somente o correr dos dias para que, quem sabe, num desses tropeços pela corda bamba, você caia de vez, sem que eu esteja ali para amparar. E só assim, deixar você ir, junto com todas as suas versões, seus erros e suas poucas gramas de dignidade.
