Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

Sobre o pensar, ou sobre a cadência consciente

Estava, como um dia qualquer, comprando algo na conveniência da esquina. Certamente era cerveja, mas poderia ser qualquer coisa, como milho para pipoca, ou óleo para o milho. Enquanto pagava ao caixa, um homem, que estava da porta para fora, esbravejava sobre como ele sabia o segredo de ganhar na loteria. Explicava aos transeuntes, aos estudantes bêbados, a quem estivesse ali, que ele era o detentor do segredo dos milhões de milhões de milhões.

Comecei a pensar.

Disse que o seu grande segredo era, obviamente, algo que não poderia revelar. Mas poderia dar pistas, dicas do que havia descoberto, indicando o caminho que os ouvintes poderiam seguir. Dessa forma, em algum momento, conseguiriam desvendar o segredo que ele possuía.

Pensava no troco que o caixa me devia, enquanto pensava na fala daquele homem.

Segundo ele, o segredo envolvia dois procedimentos que estavam, em suas palavras, intrinsecamente ligados: a cor da caneta utilizada para rabiscar a ficha da lotérica e o tempo para preencher os pequenos quadradinhos de números. Não ia direto ao ponto, mas entendia que os que apreciavam sua historinha pudessem juntar os pontos próximos. Falava com uma soberba ímpar, como se fosse o pastoreiro que guiaria o rebanho para a fonte da vida.

Já com o saco de cervejas da conveniência na mão, parei para escutar o autoproclamado ponto de verdade, naquele ponto conveniente, na rua de lugar nenhum. Pensava sem parar, o refutava imaginariamente com todas as formas de refutações que seriam possíveis. Não falava, apenas pensava. O que a cor de uma caneta e o tempo de rabisco em um papel fariam diferença em um sistema absurdamente aleatório? Ele insistia. Meus olhos de pensar reviravam de lógicas racionais, pensantes e conscientes.

Me irritava a atenção que as pessoas o davam, como poderiam dar atenção para esse farsante? Nada ele sabe! Basta botar a mão na cabeça! Minha cabeça doía de tanto pensar naquele homem, cheio de si, enganando aquelas pessoas.

Cheguei em casa, coloquei as cervejas na geladeira e andei, de lá para cá, como um pêndulo perdido na tempestade. Pensei naquele homem e de todas as formas que poderia botar a narrativa dele no chão, mostrar para todos os espectadores daquela história como eu, Eu, sabia que ele estava equivocado. Como pode ser tão fácil ser o errado?

Andei, tic tic, andei, toc toc. Abri uma cerveja e, esperando que minha dor de consciência passasse, bebi todas que comprei naquela noite.