Sem saber
— Qual a profissão dos seus pais?
Uma pergunta recorrente, nos inícios de muitos dos meus anos letivos. Era sempre seguida de um certo desconforto, que demorei a poder nomear. Era fácil preencher a primeira linha. “Minha mãe é costureira”. Ofício que eu testemunhava, desde que me entendia por gente, sem saber que não era, para ela, uma identidade assim tão fechada. Sem saber, por muitos anos, que ela já exercera muitas outras funções na vida e o tanto complexo de coisas que o trabalho fez dela e por ela.
A segunda linha, porém, sempre me cobrava mais caro. De início, fazia exercícios mentais tentando encontrar uma palavra para alguma das ocupações que ouvia falar que ele tinha. “Trabalhou em fábricas, trabalhou em bares, construiu estradas de ferro”. Que tipo de profissão isso configura? Qual a palavra?
Depois de um tempo gasto em elucubrações infantis, acabava perguntando à minha mãe. Ela costumava dar alguma resposta objetiva: “operário”. Eu anotava, mas nunca me serviu.
À medida que passavam os anos, as exigências didáticas diante daquela pergunta se complexificavam. Em lugar de apenas um pretexto de alfabetização, as professoras iam desdobrando esse assunto, com a pretensão de uma conexão das nossas vivências àquilo que aprendíamos. Artifício interessante, mas que me gerava sempre angústias e outros sentimentos difíceis. Aquela figura ausente, ali, tão presente. A materialidade da linha em branco, me encarando.
Quando a linha veio a se tornar um parágrafo explicativo, eu já era capaz de relativizar a importância da verdade a ponto de escrever qualquer coisa. Ninguém se importava com o que eu faria daquela figura, tão imaginária que era. Por alguma razão qualquer, passei a assumir que ele era agricultor. O ofício do pai dele. O pai dele, que sempre me pareceu tão fixo ao que era. (E morreu sendo, diga-se de passagem). Parecia uma resolução.
Passei vários anos dando esse destino à questão. Um lugar de desimportância. Construído por mim, mas não sem a sua falta de ajuda.
Hoje, olhei pra essa história com um misto de sentimentos. Fui desperta por uma discussão, dentre as tantas, na internet, em que alguém debatia a categoria de profissão, argumentando que os pobres, no Brasil, não têm profissões, porque se ocupam do que lhes aparece, e que isso prejudica sua identidade. À parte o mérito da discussão, fui remexida de maneira incontornável, no que tange à minha história e, talvez, à minha identidade, esse conceito de forja tão difícil.
A inocente pergunta daquelas professoras, afinal, me levou a ver que não se tratava, na linha em branco, de não compreender sua ocupação formal. A todo o tempo, o problema esteve na primeira parte da resposta, como uma denúncia do que eu sentia: não concebia a possibilidade de escrever “meu pai”.
