Raios e trovões!
Quando criança, criava alguns personagens e fazia pequenas apresentações para a família. Hoje vejo que era meu jeito de deixar extrapolar alguns desejos, com licença poética, em contraponto à menina contida que eu era. Geralmente eles eram criados a partir de algo que me marcava: pessoas, personagens, acontecimentos. Não fazia uma construção exatamente consciente, eu só “descobria” que sabia fazê-los e, à medida que ganhavam ibope, iam se aperfeiçoando. E minha família dava palco. Rs
Havia a Bruxinha que sempre aparecia contracenando com a Fadinha, que também era feita por mim. Eu entrava em êxtase quando se interessavam por uma conversa entre as personagens.
(É interessante (e também angustiante) como essa contraposição e dualidade ainda são fortes em mim. Nesse ponto do texto quero seguir dois caminhos diferentes, que com certeza terão desfechos bem distintos. Mas preciso escolher um e é esse um dos pontos de conflito que tenho com a escrita. Tem coisa que parece que não pode ser deixada para depois. Tem coisa que parece só fazer sentido junto com aquilo que também não é. Talvez seja por isso meu “vício” em trocadilhos: é um jeito de dizer mais de uma coisa de uma vez. Penso: “talvez seja dificuldade de fazer escolhas…”. E de fato é uma dificuldade, mas não concordo comigo mesma em reduzir a isso, tem algo mais aí… Mas vamos deixar para a análise. Veja só: acabei seguindo uma terceira via aqui.)
Mas dizia sobre a Bruxinha… Ela tinha um bordão - que provavelmente ouvi em algum lugar: “Raios e trovões! Muahahahaha!”. Era a maldade em seu ápice! Deixava a Fadinha muito assustada! Tão assustada quanto hoje, quando os raios e trovões fecharam a tarde, trincando o céu e meus ouvidos. É aqui que perco a razão. É aqui, mais uma vez, que entro em contradição e tiro minha licença poética: permito-me ter uma crença descabida, é aqui que creio no incrível. É aqui que perco as palavras para descrever…
Cresci acompanhando o “medo de chuva” da minha mãe. Um exagero, eu (e todo mundo) pensava (eles se arriscavam em dizer). Todos para cama! Apague a luzes! Tire da tomada! Acenda uma vela! Nem pense em tocar na corda de aço do violão! Silêncio, casa fechada e clima catastrófico. Pano enrolado na cabeça.
Era nítido o exagero, mas também tinha pena, dó, ficava mal… Também era nítido o sofrimento. Justificava para mim mesma ou para alguém novo que ainda não conhecia o esquema: “alguma parente dela morreu segurando uma panela (ou faca) na beira do fogão, atingida por um raio”. Tentava encontrar razão para a irracionalidade. Mas me irritava, porque não era só sobre o medo. Era também o autoritarismo e o lugar que ela criava, com uma licença nada poética, para exercê-lo com ainda mais autoridade. Se não tem razão, não tem espaço para interrogação. A tempestade, quem fazia era ela. Alta tensão! Raios e trovões! O olhar cortante, o tom de voz estrondoso e as palavras armadas. Sentia as lambadas em meu corpo sem ela precisar mover um dedo! A voz firme parecia doer mais que qualquer chinelada que as outras mães davam.
O medo cresceu dentro de mim. E depois me vi repetindo o mesmo ritual, inúmeras vezes, assim que começa o espetáculo do céu. Ao mesmo tempo incrédula por repetir com tamanha lealdade. Desespero e risos, com sentimentos contraditórios. O feitiço da bruxa me pegou. Tenho “mania” de bruxismo! Muita tensão.
Haja análise (e dentista)!
Há um tempo achava impossível deixar esse medo. Se fico tão fora de mim, o que eu poderia fazer diante disso? Ainda tenho dificuldade de me imaginar sem medo de “chuva”. Mas descobri que também crio minhas tempestades e eu posso falar delas. De gota em gota (não sei completar essa frase)… Esgotada.
Ps.: Agora, pelo menos o roteador permanece ligado.
Ouça: Preciso ser sincera e dizer que a música que me veio em mente foi: “Se… Os pingos de chuva”, da Xuxa.
