Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

querência

2002

Para começo de conversa, não queria estar ali. Tinha medo dos fogos de artifícios no céu: brilhantes, coloridos, barulhentos. Tapava as orelhas com as mãos e entoava uma reza para que o espetáculo acabasse logo. Procurava sentido em estar no meio daquela gente, tanta gente, num domingo à noite. Vez ou outra fechava os olhos para fingir que não via o fogo quase cair em sua direção. Os olhos pedintes direcionados à avó ilustravam a insatisfação, A velha senhora repreendia: fique quieta, menina! ELE está entre nós, trate de respeitar! Fitava a célebre figura que pairava sob o céu e flutuava entre os fogos, envolto em cordas transparentes. Julgava: quanta besteira! Todos sabem que é apenas um teatro. Adultos reclamavam de crianças que temiam monstros; mas estavam ali crendo e adorando uma encenação.

2012

Para encurtar a estória, estava ali de bom grado. Ainda sentia medo dos fogos de artifícios no céu: brilhantes, coloridos, barulhentos. Não tapava as orelhas com as mãos, tampouco queria que o evento acabasse. Estava ali para fugir da dor, do peso, da frustração. Sentia-se sozinha mesmo em meio há tanta gente. Perguntava o motivo de, mesmo após tantos anos, aquele ritual continuar acontecendo. Não gostava de rituais ou tradições, justificava para quem perguntasse sobre sua aversão: sou aquariana! Olhava aquele que encenava a subida aos céus. Conhecia o personagem e o ator que, aos olhos de qualquer beata, não era digno para estar ali. E talvez fosse isso que fazia com que, dessa vez, não quisesse tanto ir embora logo.

2022

Para finalizar, não estava lá. Nem de corpo, nem de mente. Estava longe. Cerca de 400 e tantos quilômetros distantes e ainda assim, podia visualizar os fogos de artifícios dançando no céu. Ainda sentia medo e aceitava que talvez fosse algo que acompanhasse sua vida. Medo do fogo; aquilo que queima a pele, arde, corrói. Faz virar cinza, Voltaremos ao pó. Mas não queria isso. Não aceitava. Queria não temer e brilhar como o fogo, brigar contra as nuvens, lançar-se sem hesitar. Queria levar cor, do mais puro vermelho e manchar toda aquela névoa cinzenta. Queria ser barulhenta o bastante para que a sua voz fosse ouvida, acatada, respeitada. Faltava coragem, sim. Não julgava mais aquele personagem que voava, ano a ano, nos domingos. Queria acreditar como aqueles que creem naquela figura.

Queria muito estar lá. Nesta querência, sente-se, por fim, herege, só por querer.