Porto Solidão
Sou uma pessoa que tem dificuldade para chorar, afirmou, convicta. Os olhos fechados controlavam a passagem da lágrima. Mesmo ali, sozinha, não ia admitir chorar. Prosseguiu, esparramada sobre a cama, em seu monólogo mental, silencioso e arrastado, como quem deixa um copo sujo largado na pia da cozinha, sem esperança de voltar para lavá-lo. Quando as forças esvaíram, verdadeiramente, sentiu que carregava o peso de uma angústia. O medo corroía, a dor lesou o corpo e o copo da pia, ah, ele não fazia parte da cena. O quarto, naquele estado, parecia um paralelo perfeito com o que a inventiva cabeça de nove anos de idade maquinava: reclusão, abandono, saudade.
Talvez, algum dia, aquela onomatopeia silenciosa, de sentimentos indecifráveis e perdidos na tradução, fossem desvendados, pensou. Algum dia, mas não hoje, repetiu silenciosa.
Por não saber e, ainda assim, insistir em dar nome ao que sentia, preferiu sentir saudade de outro tempo, outra vida, quiçá outra versão da realidade.
Repousando o lápis na palma da sua mão, navegou pelos seus sonhos de família unida e feliz. Quis fazer passeios, quis o afagar dos cabelos pela mãe.
Ansiou por tudo, sem nada disso poder ter.
Era impossível permanecer esperando pelo impossível, entendeu.
Teimosa, hesitava aceitar.
O escuro daquela noite de outono, quase primavera, brilhava em possibilidade. Decerto a sua convicção e sua desesperança, freiou - todo e qualquer flerte em direção ao feixe de luz projetado diretamente da rua. A luz, insistente, ocupou docentemente um segundo naquele 1/4 de hora que amargou sua existência, se misturando ao silêncio robusto do local. Decidiu que era hora de andar. Andou pela varanda, sem o medo que, outrora, iria ocupar seu corpo. Passou meia hora ali, olhando o verde que dançava pela janela. Escutou barulho de animais noturnos. Respirou ar puro. Balançou seu corpo na rede. Quando convencida que era hora de retornar, querendo que dessem por sua falta, voltou.
Ao chegar no quarto, quis encarar o espelho, mas, negou. Deixou, por fim, que o choro, traiçoeiro, fosse a terceira peça na cena que ali se formava: feixes de luz, silêncio e choro. Quisera que ouvissem que os soluços, mesmo silenciosos, gritavam por atenção, ou que seus olhos, que materializavam a falta, fossem abraçados, pouco a pouco. O choro lavou a alma e cortou a noite. Um outro segundo, dessa vez, com gosto de água salgada, amarga as primeiras horas do dia, quando o espelho, o mesmo que evitou encarar, se estilhaça em mil pedacinhos no chão. Aquele quarto, antes silencioso, se faz caos. Aura quebrou o espelho, presente da avó falecida da vizinha, gritou alguém que a tirou do transe, enquanto assistia a cena, recolhida e solitária.
Seria solidão a culpada por arremessar o espelho contra o chão?
Quando cada caco do espelho foi retirado do quarto, sentiu que era hora de sair dali, pelo menos por enquanto.
Sob os olhares vigilantes, tomou água, mas lavou o copo. Temeu que ele quebrasse também, enquanto imaginava ter um poder de quebrar tudo o que tocasse, até se entristecer com a possibilidade. Resolveu voltar para dormir, por fim. Ao apagar das luzes, novamente, ligou a pequena luminária do piu-piu, que ornava com a pequena colcha que caia sob a cama, numa decoração que tentava fazer com que o quarto parecesse seu, e não apenas o quarto de visitas ocupado por tempo indeterminado. Aceitou o feixe de luz. De repente, memorizou o seu avô. Já temos escuridão demais, enfim, deixe a luz acessa, dizia ele, incessante. Senhor José, ao seu dispor, ostentando vitalidade, sabedoria, bom humor, suor e lágrimas. Uma figura peculiar e sábia em uma família de tiranos e bobos da corte. Há dez atrás, quando responsável por conter uma crise de choro homérica, gozou de sua genialidade: queimou o tecido da calça que compunha o uniforme escolar, apenas para justificar a ausência na escola. Não poderia queimar sua própria roupa para fugir dali, embora quisesse, pois nunca sentiu que pertenceu àquela casa, apesar do dito carinho que fora recebida ali, e era isso que pensava quando travava uma briga contra elas, as lágrimas, numa batalha sem vencedores.
Enquanto as lágrimas enfileiravam-se para, por fim, lavarem aquele rosto infantil, aprendeu que podia chorar. Uma, duas, três lágrimas caem pesadas no travesseiro. Uma pausa. Como se pedisse perdão por precisar chorar. E logo recomeçou, ficando assim, até dormir. Percebeu que a mente nublava e assim, fechou os olhos.
Desse dia até hoje, sigo com dificuldades para chorar. E agora, para dormir. Encaro espelhos sempre com cautela. Não saio do meu quarto à noite para andar pela casa. Tenho a certeza de que não posso queimar minha própria roupa como desculpa para faltar aos meus compromissos. Rememoro minha versão de nove anos, acuada e deslocada na casa de familiares e vejo que continuo tal como ela: fantasiando, me iludindo, evitando a lágrima e dando desculpas para a ausência de luz. Em análise, cuido da fantasia da família feliz. Não sou supersticiosa, mas acho que preciso, às pressas, me curar do azar por ter quebrado um espelho. Vai ver, o fato de ter sido espelho alheio, triplicou os sete anos de azar. Acho que tenho um outro motivo para chorar.
