Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

poder-dever-poder

Entregar um filho para Deus era, àquela época, um inquestionável e muito justo dever de toda família que se prezasse. Uma forma de retribuir a generosidade que para com ela tinha tido o céu, na prosperidade dos negócios da família, na saúde de seus entes, na fertilidade que garantia a continuidade do sobrenome. Um filho reservado, preservado das ordinárias obrigações familiares, entregue ao serviço da Igreja e do povo de Deus. Tudo isto já é muito sabido e bem localizado na história, especialmente para os mineiros interioranos como eu. A minha questão, porém, sempre foi: o que fez com que fosse ela, a escolhida para a oferenda?

Eram, pois, oito os filhos daquele casal de nome e prestígio, entre moças e varões. Por que não a dignidade de um filho sacerdote? Por que não ostentar na paróquia próxima, um religioso de sobrenome respeitado, que pudesse casar os irmãos, batizar seus herdeiros e participar, quem sabe, de uma ou outra ocasião da família? Por que não, então, uma entrega à clausura da cidade vizinha, santuário bem-apessoado para o recebimento das virgens de cujas mãos saíam as hóstias sagradas de toda missa da região? O que fez com que, contrariando o seguimento esperado, aquela jovem fosse para tão longe, a serviço sabe-se lá de que espécie de madre, cumprir seus votos em convento quase anônimo?

Gosto de pensar na cena em que ela se oferece. Talvez enquanto secava os pratos, ao lado da mãe, a recém-adolescente pronunciasse a sentença: ‘quero ser irmã de caridade, quero ajudar os pobres! Peça ao papai que faça contatos e providencie as coisas, se assim lhe fizer gosto’. Ou quem sabe tenha ela dado pequenos sinais, deixando que a mãe acreditasse que ela mesma descobria a inclinação vocacional da menina. Rezando com mais fervor, pedindo confirmações às suas santas de devoção, não sem um aperto no peito. A mãe sutilmente sugerindo ao pai que devia ser ela, a escolhida para o serviço da Igreja. Enumerando as qualidades que certamente serviriam ao bom desenvolvimento da vocação, especialmente uma vocação de serviço: ‘veja como cuida dos irmãos quando adoecem! Quanta piedade!’. O pai, aliviado por livrar-se de mais uma das sérias obrigações de chefe de família, indo assuntar com o pároco alguma dessas casas de misericórdia.

Mais ainda do que fantasiar a cena sentencial, gosto de conjecturar a respeito das inclinações: o que pensaria menina tão moça a respeito de caminho tão definitivo de vida? Dentre inúmeros diálogos mentais que posso conceber, elejo para dividir aqui o que mais me encanta: oferecer-se retirava do pai ou de qualquer outro homem de repente disposto a desposá-la, a autoridade sobre sua decisão. Oferecer-se, travestida de passividade, era o maior dos atos que podia alcançar. Decidir, num momento em que, de sua posição, sequer se poderia vislumbrar a sombra de um tal poder. Colocar-se a serviço da Igreja de Cristo poderia ser, afinal, sua definitiva redenção. Menos no plano espiritual, que isso nem lá tanto lhe importava, mas sobre seu corpo e caminhos. Uma brecha decisiva sobre a organização mesma da vida.

Colocar-SE.

Pronome pessoal oblíquo referente à primeira pessoa do singular: ela se fez eu.