Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

Montanhas arco-íris

Numa tarde qualquer, tomava café com vovó na casa dos meus pais. Naquele momento estávamos só nós duas, depois de muito tempo sem nos encontrar e um pouco antes de tudo que sucederia após a descoberta do seu câncer na garganta.

Vovó sentada na ponta da mesa, agarrada em sua xícara de café (que logo não conseguiria mais tomar), de frente para a porta da cozinha e eu ao lado. A vista era para a serra que carregava o nome da cidade. Ela tomava o líquido com os olhos fixos na paisagem.

Acompanhei seu olhar e fiz o mesmo.

Lembrei-me de inúmeras vezes sentar-me na mureta da varanda de casa, com os pés livres, balançando (ou balangando), para o lado de fora (que era bem mais alto do que o lado oposto). Eu, que costumava viver protegida demais, fazia daquele momento meu pequeno ato de rebeldia.

Ficava ali sempre olhando aquela serra. Bom, preciso dizer que a pequena cidade localizada entre as montanhas na verdade só tem serras, mas isso é um detalhe.

Às vezes ficava ali encarando a escuridão, os pingos de luz; noutras acompanhando o voo dos pássaros e seu coro; por vezes aguardando a aurora, após uma noite boêmia junto de meus pais; amava assistir a cortina de chuva que chegava de mansinho, fechando um espetáculo e abrindo outro; e o número mais esperado: a entrada singela do arco-íris, no famigerado encontro sol-chuva ou chuva-sol. Meu refúgio.

Mas eu sabia que meu olhar estava voltado mesmo para além dali. Eu sabia, sem saber, mas muito bem-sabido, que havia um lugar além do arco-íris. Meu desejo de voar com os próprios pés crescia a cada instante. Menos eu cabia em mim, ali. Talvez influenciada pela história mágica do flautista e sua flauta encantada que viajava com as crianças para além das montanhas.

Até que um dia me convidei a ir com meu tio, que nos visitava, explorar aquela vista. Preparo físico é óbvio que não tinha, mas como poderia preparar-me para o desconhecido? Fui, na força do desejo.

Chegamos no que seria o topo. De um lado avistava a pequena cidade, já perdendo de vista minha casa. Do outro descubro que na verdade havia um mar… Um mar de montanhas a serem desbravadas para além daquela que até então demarcava o horizonte pra mim.

Mal pude processar a descoberta e uma chuva torrencial invadiu o céu azul. Não mais avistava o espetáculo, mas vivia a cena por trás das cortinas. Seria ira divina? Como ousa ousar?!

Um misto dramático, trágico e cômico de desespero e fascinação tomava conta de mim. Eu só sabia pensar que um raio racharia minha cabeça a qualquer momento. Na cara do meu tio a culpa escancarada por ter me tirado da redoma de vidro e me colocado em risco. Tentava cobrir-me como um escudo. Segurei forte em seu braço, mas nada mais poderia me proteger.

Terminada a divagação, suspirei, soltei um riso bobo, por dar-me conta que naquele momento os sonhos de outrora correspondiam com a realidade. Meus sonhos de liberdade encontraram lugar além e no arco-íris.

— É linda, né, vovó?

(Silêncio)

— Eu me sinto sufocaada – respondeu.

Fiquei desconsertada. Sem palavras.

Sufocada, apesar do ar puro da natureza preservada; sufocada, apesar de nem ali mais morar; sufocada, apesar de àquela altura e condições ter parado de fumar (após seis décadas o fazendo); sufocada por uma cadeia de montanhas e palavras não-ditas.

(Engasgou-se com o último gole de café.)

Não tocamos nunca mais naquele assunto. Mas não saiu mais da minha cabeça. E de algum modo aquilo sempre esteve implícito na nossa relação, de algum modo era aquele desejo de liberdade que nos unia.

É, talvez não fosse o flautista… Talvez seja herança de família, de geração, um basta! Talvez a flauta tenha me ajudado a encontrar ar para a jornada, porque o cigarro apenas inebriou.

Ps.: Vivi para chegar até aqui, desbravar minhas montanhas, avistar outras e, finalmente, hoje, voar com meus próprios pés, nos pedais do meu primeiro e tão sonhado carro. Presenteada com mais uma chuva torrencial logo na primeira partida, com o carro se descobrindo barco. Raios e trovões! Bom, se tem mesmo ira divina, vovó também está por lá. Faz um Em Nome da Avó e Amém.

Serra à vista!

Ouça: Over the Rainbow (com Eva Cassidy)

Imagem de montanhas arco-íris, China