Divina Comédia - Parte II
Encantou-se pela liberdade quando os pés, ainda enclausurados, tocaram o firmamento e o paraíso pela primeira vez. Embriagou-se com o dançar dos musgos e o ardor dos gerânios. Buscou familiaridades; encontrou antecipações. Poderia viver ali, escolheu, com convicção. Alçou voo, com coragem e rebeldia, em direção à insinuante terra prometida. Sem um tostão, precisou pagar aquele preço, afinal, se ali ficasse, poderia banhar-se, a qualquer hora e quando quisesse, naquele brilhante e chamativo lago dos milagres. Quando vigiada e pronta para ser punida, fechou a porta. Sem hesitar, jogou a chave fora. Fugiu. Ao chegar em sua unidade celestial, revestida em tons sóbrios, viu que ela não protegeria suas feridas ainda abertas. Todo aquele musgo, que se apresentou confortável, era maldoso o bastante para deixá-la cair. Do chão, viu a coleção de gerânios serem arrancados, sem piedade, quando não floresciam em tons de verde lucro. Toda aquela coragem, outrora engolida, pareceu regurgitar dentro de si desde o momento em que liberdade lhe traiu. Assim, escolheu a angústia, essa estranha familiar, como sua única companhia. Passou a viver em exílio. Não se moveu. Todos os dias, cuidadosamente, fez a análise do gráfico do seu fracasso; este que segue pleno e sem declínios. Performou, sob os saltos finos que deslizam o chão tátil, sua simpatia perdida. Mas é o corpo que clamou por indulgência: sem movimento, fixado, vendido às regras dos engravatados. Pudera ter se enamorado por outro tipo de liberdade; não essa que congelou seus pés nos dias frios ou que derreteu, cada um dos seus sonhos, em dias quentes. Quis a chave, mas já não há tantas formas para encontrá-la sem renunciar ou enunciar o seu desconforto. Negou o inferno, mas seria corajosa, como fora naquele primeiro dia, para ousar difamar suas próprias escolhas como quem vive num purgatório?
Menção ao livro “A Divina Comédia” (1307/1321) de Dante Alighieri. A parte II, aqui mencionada, apresenta o purgatório enquanto uma montanha/espaço reservado aos que se arrependeram em vida de seus pecados.
