Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

Cumprimento

Na minha infância, fechar as portas internas dos cômodos da casa acendia um enorme alerta. Algo de errado ou proibido muito provavelmente se desenrolava por detrás da folha de madeira. A única justificativa aceitável para cerrar uma porta era a momentânea nudez de uma troca de roupas. Rápida e anunciada com antecedência. A privacidade nunca foi um direito, naquela relação mãe-filha. Palavra sequer conhecida, para ela não havia precedentes.

No avesso revelador daquele costume de portas sempre abertas, o descobrimento do corpo era fortemente condenável e extremamente vergonhoso. O pudor, acima de todos os costumes. Muitas vezes, justificando-os. Censura total sobre cenas que minimamente aludissem ao sexo, na tv. Críticas ferrenhas a músicas que expressassem palavras de baixo calão ou qualquer coisa explícita a respeito do sexo, da intimidade, do corpo, do gozo. Tolerância zero para artistas “desbocados”, “assanhados” ou “baixos”. “Sujos!”

Ainda que tenhamos morado sempre em casas de fundos, as portas e janelas que davam para fora permaneciam rigorosa e exageradamente vedadas, por toda sorte de cadeados, trincos e fechaduras. Na infância única que tive, presumia que fossem manias de uma mãe velha, bastante amedrontada diante do que precisava enfrentar enquanto divorciada, criando uma filha sozinha.

À medida que cresci, porém, vi a desconfiança migrar de lugar e ser colocada ao meu lado. Vezes sem conta era surpreendida por uma aparição repentina no quarto. Passos sorrateiros impediam qualquer vislumbre de um anúncio. Aparições logo disfarçadas com motivos toscos e assuntos sem nexo, visto que a pacatez dos meus costumes não escandalizava em nada àqueles olhos desconfiados.

Mas o efeito rebote não tardou em sugerir suas tentações. Nascera em mim, devagar e sem alarde, um desejo de transgressão difícil de nomear. Não sabia eu àquele momento, mas talvez se tratasse de fazer cumprir a profecia. Passei a meus pequenos e íntimos motins, brincando de testar os limites e desafiar aquele olhar. Promover o proibido, sozinha no quarto, porta aberta como deveria ser. Tudo começou com a anti-censura nos textos que lia, buscando acessar o que me era negado. Daí em diante, uma sequência ascendente de delitos privados, realizados às claras.

Treinei os ouvidos como nunca. Identificava pequenos sinais, os sons da casa catalogados com precisão. Passei a conseguir prever a maior parte das aparições pela ausência de um ou outro ruído. A revelação pela falta. Brincar com fogo, numa roleta-russa arriscada, queimando cartuchos vazios cada vez em intervalos menores.

Até que houve o fatídico dia. Depois de muitas escapadas alucinantemente satisfatórias, o grande flagra de um quase beijo, em boca minha tão semelhante. Sim, àquela altura o risco elevara-se ao ponto de levar ao quarto outra pessoa, sob pretextos de amizade, mas com quem já era sabido que algo mais aconteceria, cedo ou tarde. E veio: o escândalo tantas vezes ensaiado, senão ansiado. Cumprida, a expectativa imediatamente transformou-se em terrível maldição. Ferida aberta à bala. Para ela, para mim, para todas as presentes e futuras.

Não importava que fosse um quase. Estava realizado o ato irrealizável, desnudadas todas as estruturas de pudor e moral artesanalmente fabricadas por anos a fio. Nada nunca mais seria como antes. Muito prazer! Foi ali que eu nasci.