Quatro colunas


por Aura, Midríase, Sentinela e Sola

Cheiro de corpo vivo

Há algum tempo, descobri que era possível não usar desodorante, mas sem feder cecê. Descobri também que aquele cheiro é pelas bactérias que se desenvolvem e se acumulam ali, nesse buraco nem tão buraco assim. Você sabia?

Eu até que me considero uma pessoa informada, mas às vezes descubro certas coisas e me sinto tão estúpida! Fico boquiaberta com o fato de não ter me dado conta de algo que parece tão óbvio. Ah, esse ponto! Sabe quando você percebe algo sobre alguém e aquilo está tão na cara, porém claramente a pessoa não se dá conta? Às vezes começo a olhar pra mim, pra ver se não tem algo tão na cara que não estou enxergando. Mas é preciso do espelho, ninguém consegue ver a si mesmo sem um “espelho”. Só vemos um reflexo de nós mesmos, é isso?

Descobri mais sobre as axilas porque durante a pandemia passei a ter um cheiro mais forte. Na verdade, durante a pandemia, pela primeira vez, adiei o uso do desodorante. Estava me incomodando como estava manchado, embaixo dos braços. E havia lido sobre alumínio nos antitranspirantes de aerossóis. E era incomodada com as roupas manchadas. Resolvi dar uma desintoxicada. E aos poucos fui sentindo um cheiro que nem sabia que tinha. Forte. Desagradável, mas inebriante. Ficava um pouco envergonhada pela sensação que me causava. Que porcaria! Lembro que na adolescência conhecia um garoto que costumava “cheirar cecê”. Qualquer um em volta percebia. Era tão forte que ardia. Um menino entrando na adolescência. “Não é possível que ele não percebe?!”, eu pensava. “Preciso avisá-lo”. “Mas e se ele já souber? Não é da minha conta!”. Passou o tempo e o menino já não tinha mais cheiro, de cecê. O que mudou, eu não sei.

Parece que sempre (apesar de sempre nunca ser sempre), sempre fui muito delicada. Teve uma época que me questionaram até se eu peidava. Fiquei chocada! Como poderiam pensar algo assim? Rs Mas também como pensariam diferente, se eu fazia questão de esconder?

Passei a usar desodorante natural. Comprei o kit com três fragrâncias diferentes. No fim das contas, o de maracujá parecia atender melhor minha demanda. Um cheiro de bala macia. Estranhei no início, mas me acostumei. Mas depois percebi que o problema persistia, era só ficar um pouquinho sem desodorante que o cheiro secreto, nada discreto, dava as caras. Descobri, então, um produto que prometia acabar com o uso de desodorantes. Analisei bastante, já que o preço era mais salgado que o doce maracujá. Comprei o kit para me despedir dos desodorantes. Li sobre os procedimentos e… Não resolveu! O cheiro continuava lá, ora disfarçado, ora reforçado. Comprei mais uma vez, afinal, não tinha seguido todas as regras. Nada! Do mesmo jeito. Por fim, estou usando novamente o doce e enjoativo aroma de maracujá. Ou pelo menos estava, até ontem pela manhã.

Meses atrás, o assunto “cheiro forte” virou questão de análise. Estava fedendo demais para passar despercebido e, àquela altura, já não me reduzia às axilas. “Cheiro de corpo vivo!”, marcou meu analista. É, cheiro de corpo vivo, contrapondo a aura fúnebre que me assolava. Meu olfato estava cada vez mais apurado, enquanto o assunto lá fora era a perda dele, do paladar e até mesmo do tato. O toque estava praticamente proibido! Ficava apreensiva, não queria perder os sentidos. Não queria perder o gosto! Tanta gente se foi, tão de repente, de maneira tão solitária, restando apenas o perfume da memória. Solitária talvez mais para quem ficou… Acredito que, no fim, a morte é sempre solitária. Como, no fundo, quando nos damos conta, a vida também o é. Também não. Morte e vida fazem parte da mesma coisa.

Ontem cedo arrumava a mala, para voltar pra casa. Pra variar, a bagagem excedendo, voltando mais cheia do que na ida. Não estava na casa dos meus pais. Fui espairecer um pouco na casa de pessoas muito queridas, onde vive um pequenininho, de apenas três anos, que conquistou meu coração, que trouxe vida em um momento no qual a morte começava a se anunciar para mim. Seu nascimento aconteceu quando soube do câncer da vovó, que, por já estar debilitada com outras coisas, teria pouca chance diante das próprias células. Eu que tinha nascimento e morte ainda tão distantes, fui logo presenteada com os dois batendo em minha porta.

Pensei agora que costumamos falar em dar a luz no início e encontrá-la no fim. O que acontece com ela no meio do caminho, se temos que buscar algo que supostamente havíamos ganhado inicialmente? A perdemos? Ora, ora… Recorri ao Google. Desconfiei que a expressão pudesse ter crase. Diz-se dar à luz. Isto é, a sentença de morte está dada logo ao nascer. Mas insistimos, em boa parte das vezes, em viver.

Cheiro de corpo vivo! Enquanto arrumava as malas na manhã de ontem, fui ao banheiro e recolhi alguns pertences. Não era muita coisa, mas as mãos ficaram cheias. Meus movimentos estavam bem calculados, pois não queria acordar os pais e a criança que custavam ter uma boa noite de sono. “Depois da maternidade…”, sempre começava minha prima, tentando expressar o cansaço e desgaste que sentia, apesar do ou pelo amor que criou quando se tornou mãe. Mas eu dizia sobre meus movimentos calculados… Hahaha! Não há cálculo para a vida, aprende, mulher! Quando pegava minhas coisas no banheiro, precisava tomar uma simples decisão: passo o desodorante agora ou lá no quarto? Coloquei tudo na mão e fui em direção ao quarto. Mas em um pequeno instante antes de sair do banheiro algo veio à tona. Mas foi tão rápido que não pude processar, pelo menos não conscientemente. Porque estava quase terminando aquela tarefa idiota, insignificante, prestes a passar pela linha de chegada e aconteceu o que o cálculo não poderia prever. Plaft! Cai algo de minhas mãos e se espatifa no chão. De todos os recipientes de plástico que poderiam cair, cai o desodorante, aquele, de maracujá, que deixei para passar depois. O vidro não quebrou, ele explodiu! Fez um barulho tão alto que chegou a tirar a criança do sono profundo. Paralisei! Não me mexi, não queria causar mais estrago. Aguardei até que o silêncio parecia reinar novamente. Varria e me movimentava sem querer deixar rastros. Mas o cheiro de bala macia tomava conta do ambiente e na minha cabeça outro cheiro estava impregnado.

Cheiro de corpo vivo! É, a vida segue. Preciso tomar um banho e ir comprar um desodorante.

Ps.: Questionei-me muito se postava esse texto. Pensei em escrever outro para encobri-lo, afinal, cheiro de cecê a gente esconde, não é mesmo?

Ouça: O perfume da memória – Oswaldo Montenegro (O filme também é lindo!)