AMORTE
Primeira e última semana, dezembro de 2022
Ando com dor nas costas. Não sei se é por sedentarismo, por passar muito tempo sentada, se é a postura ou se é a idade aumentando. Talvez seja o combo disso tudo. Disso e tudo que venho carregando nas costas. São coisas de anos, mas esse ano foi especialmente intenso.
Na verdade, acho que ando incomodada. Estou meio sem lugar… Essa noite, por exemplo, passei revirando na cama. É um lugar emblemático. Vim passar as “férias” de fim de ano com meus pais e é sempre uma questão onde vou dormir. Saí de casa há alguns anos e não tenho mais quarto. Na realidade, acho que nunca de fato tive um quarto aqui. Meus pais me oferecem o lado esquerdo da cama deles, já que minha mãe prefere o sofá. Não entendem que já estou grandinha demais pra isso (e pra muitas outras coisas) e, sinceramente, esse cômodo cheira mofo, abafado demais, eles que se resolvam. Geralmente fico com o sofá, mas, né, o sofá é na sala, totalmente sem privacidade (se é que tem algum lugar com privacidade nessa casa). Por vezes fico no quarto do meu irmão (o próprio nome já diz qual é a questão). Ele às vezes dá uns sumiços ou até aparece, mas… Deixa isso pra outra hora. Enfim, hoje estou no quarto do meu irmão, agora com uma cama de casal. Esse quarto já foi um pouco nosso, um pouco meu… Não! É o quarto do meu irmão, foi pra ele que foi construído.
Bem, voltando ao que estava dizendo, ando incomodada… E estar nesse momento em casa, na casa dos meus pais, mexe mais com esse incômodo. 2022, eleições, família defendendo Bolsonaro. Nunca havia discutido com eles, nem com ninguém, como dessa vez. Nunca passamos tanto tempo sem nos falar. Bem, aqui estou eu. Estamos nos falando. Mas algo ali se rompeu. Não sou mais a mesma de antes e eles não são mais os mesmos, para mim. Na verdade, talvez sejam exatamente quem sempre soube que são, mas agora não posso negar, não posso não ver. O véu, o manto sagrado caiu.
A cama! Essa noite apaguei a luz e me deitei. A coluna! Não encontro uma posição confortável aqui. O colchão está deformado. Na verdade, o colchão tomou a forma do meu irmão, que insiste em permanecer do mesmo lado. Criou uma divisão gigante, no colchão. Virei, contorci, estiquei! Pronto! Aqui! Cabeça pra cima, olhos no teto. Então, como um cometa, veio a cena: estava no leito de morte de minha avó. Ali, onde há poucos meses eu segurava forte a suas mão e acompanhava seu último suspiro, a pulsação diminuindo, o brilho dos olhos sumindo, o suor consumindo, o roxo se destacando, barulho e silêncio conflitando. Podia sentir tudo e nada ao mesmo tempo, como nunca pensei ser possível. Parte de mim enraivecida, sentada/deitada/ajoelhada do outro lado, incomodada com a divisão, do colchão, que me impedia de dar-lhe o conforto merecido. Não importava meu corpo, vovó estava indo e não tinha conforto. Agitada, sem lugar. “Pode descansar, vovó”. Então tivemos aqueles últimos minutos e, mais rápido, segundos. Será que lhe passou um filme? Pois pra mim nada existia de mais real.
Invadida. Naquele entardecer, amorte veio.
Mas nessa mesma noite, naquele momento, ontem, quando olhei para o teto, também me deparei com as estrelas que há tempos não olhava. Era meu pequeno pedaço de céu, daquele curto tempo em que habitei aquele espaço. E, olhando para as estrelas, recordei-me do amor. Sob aquelas mesmas estrelas, outrora, esteve um outro amor. Meu primeiro amor. Um saber dessabido, sem palavras, em ato. (In)conscientes, olhos atentos, nossas mãos se aproximavam o mais perto que podiam, na linha limítrofe da definição de toque. Ali dentro, simples. Lá fora, complicado demais. A(r)dormecida, desperto, segurando, da forma mais leve que se pode ser firme, a delicada mão daquele amor que a luz do dia anunciava a partida iminente. A cama era outra, dois colchões (corpos) separados nas alturas. Uma divisão concreta, uma aproximação vivenciada. Um amor. Uma dor. Um ardor.
Olhos cristalizados, fixados naquele céu de lembranças. Dou-me conta, então, que entre aquelas quatro paredes, sob meu pequeno pedaço de céu, conheci um amor e despedi-me de outro. Pela primeira vez, naquele espaço-tempo, encontrei um lugar. Amortecida, prestes a adormecer… E, num piscar de olhos, na mesma velocidade em que apareceram, as recordações cessaram. De repente jogada daquele céu. Uma queda. Estrela-cadente. (Faz um pedido!). Desejo… O som insistente das batidas na porta da casa obriga-me a levantar. Preciso abri-la, destrancá-la. Meu irmão apareceu.
Ps.: Ironicamente, nas linhas finais desse texto secreto, sou obrigada a apressar-me, pois o som dos passos anuncia que alguém chegou e a mesma porta vai se abrir. Meu pai apareceu. (Minha mãe fica para outro momento.)
Ouça: Amor de índio
