A CASA
Uma das minhas atividades preferidas quando criança era brincar de imaginar. Passava horas e horas elucubrando sobre tudo e todos - algo que pode justificar a insônia crônica desde a pouca idade. Ao me preparar para dormir, naquele quarto com estrelinhas que brilhavam no escuro (e que não me deixam mentir que fui uma criança do final dos anos 90), eu passava horas pensando em possibilidades irreais da minha existência. O exercício era incansável, eu repetia, repetia, repetia. Imaginava sobre a escola, sobre artistas teen que eu gostava, sobre o garotinho da sala ao lado da minha. Mas o cenário preferido era imaginar como seria se eu tivesse outra casa: sem que eu precisasse ocupar o quarto de hóspedes - onde eu pudesse abrigar meus brinquedos e que tivesse uma mãe para pentear os meus cabelos. Não precisava nem ser a minha mãe mesmo, eu aceitava a que a minha imaginação montasse: em alguns dias, ela se parecia com a namorada que meu pai estava na época, ou com a minha professora preferida, com a minha tia tão amável (que hoje pouco fala comigo por opinião política). Eu imaginava a mãe ideal. O perfeito modelo materno. A cena recorrente era: eu visitava o trabalho da minha mãe e depois íamos juntas para uma loja comprar coisas supérfluas para a casa. Encontraríamos o meu pai e seguiríamos para um jantar naquela casa aconchegante e o dia seria finalizado com uma contação de histórias sobre princesas. Sei que em algum momento, isso aconteceu. Mas eu não lembro. Imaginar era, então, uma tentativa de lidar com aquela lacuna, com aqueles sentimentos interrompidos que não tive chance de viver. Era fácil imaginar. Passei noites acordada pensando sobre formas de preencher aquele espaço; criando justificativas racionais e um tanto quanto selvagens para lidar com os vazios. Quando o dia chegava, lá estava eu, pronta para desbravar, sem ilusões e sem pensamentos. Apegada à uma racionalidade que me fazia pensar que aquele espaço não precisava ser preenchido, afinal, só era lembrado ali, no escuro e no silêncio, numa tentativa para fugir do sono e dos sonhos tristes que tanto me assustavam. Anos depois, porém, fui confrontada com a realidade. Eu não podia, não mais, imaginar cenários em que éramos, em algum lugar ou dimensão qualquer, uma família feliz, naquela casa de parede rosada. Eu entendia, finalmente e não estava infeliz, apesar. Eu estava convencida de que não poderia mais imaginar cenas, por isso, criei uma espécie de adoração pelo que havia acontecido ali e não mais o que eu gostaria que ela fosse. Entrei em contato com o que havia ficado, e me apropriei. Andei pelos quatro cantos: a casa era fria, totalmente diferente do ambiente que costumava imaginar. Aos poucos, percebi que os espaços não precisavam ser preenchidos e sim, evidenciados. Eu não precisava relegar sua memória apenas ao travesseiro. Há algum tempo atrás, achei atéaquele quadro que meu pai rasurou com nossas iniciais. Fotografei a parede com meus primeiros escritos e desenhos. Hoje a casa não existe mais. Por gana, ego e todo o resto, foi demolida. É um amontoado de terra e histórias de três anos vividos ali. Ao ver as fotos da demolição, fitando aquele amontoado de concreto e tijolo, sinto que não preciso mais imaginar para ter um pouco de realidade. Na mesma velocidade em que cada pedaço da casa foi destruído, vejo que há outras infinitas (des)construções. Como ela será daqui um tempo? Como será a família que irá morar lá? Passado, presente, futuro se conectam no tempo verbal deste texto e entre as memórias cruas e criadas, imaginadas e vivenciadas; e pelo visto, eu não estou tão distante da imaginação quanto eu gostaria.
